Não precisa pesquisar nenhum estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para chegar à conclusão de que uma das obras que mais crescem em nossos dias em Campo Grande são os buracos (também conhecidos como batocos, boçorocas, covas, depressões, escavações, grotas, sorocas, sorocabuçus —tem um bocado de sinônimos) nas ruas da cidade.
É quase inacreditável, mas em Morenópolis há um buraco a cada
23 metros de rua. Índice que continua em célere crescimento, apesar das
promessas do prefeito morenopolitano de plantão Marquinhos Trad, levantando a
suspeita de que no futuro haverá um território urbano dividido em apenas dois gêneros
de espaços: os com buracos e os remendados (não há a perspectiva de haver
territórios sem buracos).
Num passado não muito distante ainda era possível trafegar
tranquilamente em qualquer rua, sem ter de praticar slalom (percurso sinuoso
entre obstáculos, ou seja, zigue-zague). As ruas pertenciam ao cidadão. Agora
pertencem aos fazedores, consertadores e
outros especialistas buracos. Hoje é impossível os condutores dos mais diversos
tipos de veículos (motos, automóveis, caminhões, carrinhos de pipoca,
bicicletas, velocípedes etc.) trafegarem pelas vias públicas sem ter de desviar-se
ou cair nas covas que matam molas, amortecedores e outras partes dos
semoventes.
Depois de anos de estudos, concluiu-se que o buraco —como
centenas de outros tipos de mobiliário urbano(?)— também é uma conseqüência do
progresso, embora alguns historiadores afirmem que o fenômeno seja mais antigo,
tendo surgido quando o homem das cavernas teve de sepultar o primeiro parente
morto. Em Campo Grande cai uma lágrima de chuva e faz logo um furo no chão.
Passa um Corolla, uma Brasília amarela, a picape de um botinudo desabotinado
—entra e salta, bate e alarga. E surge a primeira utilidade do buraco, que é o
de sítio de despejo. E ali se podem despejar muitas águas: a suja, a de sabão, do
banho do rebento, a das sobras das comidas e até, de outras sobras que são um
tanto, digamos, escatológicas.
E cheira
mal? E como cheira. É o cheiro da presença do pior dos seres criados pela
natureza —ou por Javé, a partir da sua divina imperfeição. Os buracos se
ampliam e aumentam de número. Agora já não é mais um buraco sozinho ou vazio
—tem lama. Lama de todas as cores (que o buraco não é racista): tem a branca de
areia, vermelha de barro tijolento e a escurinha, que é da mesma cor dos
dejetos. Passarão os dias e será uma lagoa cheia de muitos outros viventes: baratas,
moscas, mosquitos, limos, águas fétidas onde nadam pererecas e cobras d’água.
E cuidado! Não despeje sal na água dos buracos. Se fica salgada
você pode ter no tal buraco bichos como baleia, arraia (até arraia miúda) e
tubarão, entre outros. É um perigo para a criançada que toma banho e não sabe
que pode morrer de morte comida. Tubarão é bicho que mata quando é peixe, e
come tudo da gente se é pessoa. Mas, ao contrário do que se diz, a água do
buraco não está ali só pra provocar doenças e quebrar carros —também educa. O
buraco da rua é, verdadeiramente, uma escola do ócio e do lazer. Ali aprendem
as crianças a arte de pescar, de navegar e de nadar. Ali aprendem os meninos a
defender a sua propriedade, enxotando e vituperando os rivais. Conhecem a lei:
no buraco das pescas só pesca o próprio dono do peixe.
É também óbvio que os buracos têm uma vigorosa vertente
ideológica. São buracos democráticos —todos, sem qualquer discriminação, podem
cair com seus veículos, enche-los de lixo ou destroncar os tornozelos. São para
todos, o banho das crianças e as retretes dos adultos apertados. Ainda mais: fornecem
água gratuita para quem quer lavar a roupa. Cheiram mal para toda a gente. Não
escolhem nariz, nem posição social. Quem passa, cheira. Quem não cheira, é
porque não passou. Dividem por todos as doenças típicas dos buracos, tais como
zica, dengue, chicungunia e outras, que matam a todos sem discriminação. Só não
podem matar político, porque político não usa as ruas esburacadas (portanto,
não caem em buracos) e filho de político estuda fora.
Todos sabem que os buracos fazem parte do patrimônio da
cidade. Patrimônios histórico e turístico —e econômicos, porque proporcionam
trabalho e lucros pra, mecânicos, borracheiros, empreiteiros, furadores etc.
Dizem até que o prefeito está pensando em criar a Secretaria do Planejamento,
Perfuração e Conservação do Buraco (Seplaperconbu), exatamente pra administrar
as vantagens de ter buracos nas ruas da cidade —e lembrando que, a cada vez que
se tapa um buraco, perde-se uma história.
Porém, os motoristas de toda a cidade têm enorme ojeriza ao
buraco. A resistência do condutor, do ponto-de-vista psicológico, é
compreensível. Vive tão atolado em dívidas e impostos que ainda não se
acostumou a ter que pagar para ter ruas esburacadas e perigosas. Teófila Putifunda,
funcionária do Ministério do Trabalho, faz sua queixa: "caindo em no
mínimo sete buracos todos os dias, o mínimo que se ganha são sustos, pneus
desinflados, amortecedores destroçados etc. Quanto é que isso dá no fim do
mês?" Uma fortuna, diz ela. Teófila conta que tinha um Corcel 77, mas na
quarta prestação foi obrigada a vendê-lo a um ferro-velho. Não podia pagar os
consertos do automóvel.
O problema, por conseguinte, também atinge as indústrias de
automóveis, que procuram tomar suas providências para não reduzirem a produção
e perderem as vendas. E em neste 2017 é muito provável que os carros já venham
equipados com mini-usinas de asfalto, pás, enxadas, retroescavadeiras,
rolos-compressores etc. Talvez não resolva o problema, mas vai fazer crescer a
indústria e o comércio de maquinário rodoviário do município.
Quando candidato, ainda em 2016, o prefeito de plantão
Marquinhos Trad prometeu exterminar todos os buracos da cidade em curtíssimo
prazo. O doutor Trad seria o Exterminador de Buracos Monepolitano, o Janot das
covas de ruas, becos e vielas. Trad bem que tenta, mas o serviço é tão malfeito
que quando um buraco é fechado num dia, logo ressurge no dia seguinte. É como
se os buracos sentissem saudades de seus lugares nas vias públicas e voltassem
sempre. E com muitos irmãozinhos.
Luca Maribondo
lucamaribondo@uol.com.br
campo Grande | MS | Brasil
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