quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um homem realizado

>>>
Estou em Corumbá. Vejo o Rio Paraguai. Para onde quer que eu olhe, vejo o Paraguai. À direita, à esquerda, em frente, atrás, abaixo, em cima. Vejo o Paraguai. De todos os lados. Pra falar bem a verdade, estou dentro do rio Paraguai. Me afogando. É verdade!, estou submerso e engolindo água pra mais de metro. Escorreguei na margem e me estabaquei. Agora, estou aqui, sem fazer nada. olhando o rio, de todos os lados.

Se ao menos eu soubesse nadar, sairia logo daqui. Não pelo desconforto. Afinal a água não está tão fria, e passado o primeiro choque, até que é bem agradável. O problema é que não consigo respirar água. Apesar da água ter mais oxigênio que o ar, eu não consigo respirá-la; deve ser porque a água tem oxigênio mas não tem nitrogênio.

Mas eu não poderia nem deveria estar dentro d'água a esta hora (é de manhã). É que tenho muito o que fazer. Entre outras coisas, tenho de escrever meu artigo para o Casa do Maribondo, meu blog na Internet, este blog. Sou Luca Maribondo. É bem possível que você tenha ouvido falar de mim: escrevo na mídia, sou conhecido nas mídias sociais, fui comentarista de televisão y otras cositas más que, se não me tornam uma celebridade, fazem de mim uma pessoa bem conhecida.

Voltemos ao Rio Paraguai. É apavorante estar se afogando, desconfortável não poder respirar. Apesar do meu ateísmo crescente, não consigo evitar de pedir a Javé que me ajude, que apressem o socorro, que venham logo me tirar dessa água suja. Mas ainda não ouço a sirene dos bombeiros. Também, com os ouvidos cheios d'água.

A correnteza é mansa, posso até mesmo firmar-me no fundo, se quiser. Não quero. Quero é sair daqui, preciso comentar a campanha eleitoral —as eleições se aproximam—, chamar o eleitor a melhorar sua acuidade e votar em candidatos que realmente tenham a capacidade de governar com seriedade, que sejam honestos, criativos, trabalhadores e que fujam da corrupção.

estou no ponto em que não consigo prender a respiração. É uma aflição. Outro no meu lugar se desesperaria. Mas eu não. Confio nas providências que devem ter sido tomadas. Até sei porque demoram. É que ninguém me viu cair. Como será que a polícia detecta esses casos, de pessoas que caem no rio? Câmaras de vigilância sobre as pontes? Não. É mais provável uma rede de fotocélulas sobre as águas.Afinal, por estas plagas, a tecnologia ainda não é tão moderna e as câmeras de vigilância ainda são objetos raros. Câmeras, nos bancos e nas lojas: sorria, você está sendo filmado.

Eu poderia morrer afogado, mas sei que estou sob a proteção da polícia e dos bombeiros de Corumbá. Vou mencioná-Ios no meu texto. Como será que fazem após detectar a queda do meu corpo? Pensei em bombeiros, mas isso seria muito lento. Homens-rãs? Quem sabe modernos robôs anfíbios.

Que tédio! Meus pulmões vão estourar. O atendimento, agora compreendo, é inadequado. Demora-se demais para socorrer os afogados. Há um sofrimento inútil. Um sofrimento aterrador. Tivesse aqui um papel impermeável, e começaria agora mesmo a escrever meu artigo.

Dizem que quando um homem está prestes a afogar-se, toda a sua vida lhe passa diante dos olhos. vejo água e uma renca de peixes, galhos semi-submersos, uma enguia passa sinuosa. Talvez seja porque sei que não vou me afogar. Não tenho medo. Eles demoram, mas chegarão. Tenho certeza. Mas a demora é incrível. Talvez seja para valorizar o trabalho, o salvamento. E assim, solicitarão mais verbas, terão mais visibilidade na mídia. Não sei onde iremos parar com essa burocracia.Um desrespeito. Antes de tudo, um desrespeito.

Eu, um cidadão proeminente, aqui me afogando como um Mané qualquer, e a polícia demora-se, deixa um contribuinte em sofrimento inútil. E em risco de morte, também. Se eu sofresse do coração, poderia ter morri do, com o desconforto, o medo e a tensão. Por isso que estou sempre na oposição: hay gobierno, soy contraapesar de que considero a frase hay gobierno, soy contra um infantilismo político.

Os governos, por mais deficientes, reacionários e incompetentes que possam ser, representam uma possibilidade de defesa contra os interesses privados. As leis podem beneficiar, na maioria das vezes, apenas os ricos, mas a ausência de leis beneficia, necessariamente, sempre, os ricos. Mas estou tergiversando enquanto me afogo. É preciso estar sempre vigilante, atento para preservar nossas liberdades fundamentais, nossa família, nosso modo de vida.

Penso que eles sabem que não sofro do coração. Devem ter a minha ficha médica. Compreendem que posso resistir enquanto atendem casos mais urgentes. Eu preciso ser mais compreensivo. Eles têm tantas coisas pra fazer. E eu não posso esperar tratamento especial. Sou apenas um cidadão como outro qualquer.

Eu sabia. Ali vem a sombra, meus salvadores chegando, quando eu pensava que perderia a consciência. Ah! É apenas um homem, quase nu. Eu o conheço. Das histórias em quadrinhos .É Namor, o príncipe submarino. Não sabia que ele nadava em rios, e logo em Corumbá. Pensava que vivia suas aventuras no mar. Talvez haja muitos deles, todos iguais, clones de um Namor ancestral. Namores múltiplos, a vigiar as águas, impedir que os cidadãos se afoguem, mesmo que queiram. Devem impedir suicídios também. Sinto que ele me toca com a mão poderosa. Me abraça por trás com todo seu corpo. Sinto-me salvo. Sinto prazer. Desfaleço em abandono.

Sou Luca Maribondo, autor único do blog Casa do Maribondo. Tudo Isso aconteceu há muitos anos. Nem por um momento, nem mesmo nessa crise, duvidei da eficácia da civilização. O sangue continua fluindo. E eu escrevendo para a Casa do Maribondo. Agora, descubro que até senti uma certa frustração por não haver morrido afogado. Afinal, o cadáver, este sim, é um homem realizado.


Texto: Luca Maribondo

Nenhum comentário: