domingo, 8 de agosto de 2010

Classe média de todos os domingos

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Domingão, dia de ir almoçar fora com a família —mormente neste domingo, 8 de agosto, Dia dos Pais, o que geralmente é atraso de vida. O consenso familiar (na verdade foi uma decisão autoritária do patriarca) decidiu que todos iriam pra uma churrascaria. Depois de passar longos minutos na fila de espera na calçada, ao sol do meio-dia (sim, ao sol, porque os donos dos restaurantes locais ainda não descobriram uma forma de deixar as pessoas esperando com mais conforto quando o estabelecimento está lotado), todos entram driblando o labirinto de mesas.

Imagine a cena: um grande salão, lotado de homens maduros, alguns bem barrigudos (os papais), senhoras de cabelos cuidadosamente penteados e trajes jecamente domingueiros (as mamães), rebeldes com ou sem causa (os filhinhos) e as perdições dos papais, com piercings, calças Saint Tropez (era assim que eram chamadas as calças de cintura baixa na década de 1960) ou saiazinhas vertiginosamente curtas (as filhinhas). É nesse caótico salão, com papais, mamães, filhinhos, filhinhas e eventuais bebês e babás, que ficam circulando apressados, homens e mulheres vestidos geralmente de branco e preto ou aventais promocionais, empunhando pratos, copos, bandejas e, principalmente, facas afiadíssimas e espetos pontudos, onde estão traspassados músculos e vísceras de mamíferos, roedores, aves ou peixes —e outros animais: aqui na Guaicúrundia é possível encontrar até rabo de jacaré ou pernil de javonteiro (que bicho é esse?!) assados.

Assim descrito pode parecer muito estranho, mas essa é uma das maiores paixões do povo brasileiro, o rodízio. O campo-grandense —e o brasileiro de modo geral— adora essa comilança rotativa e apressada chamada rodízio. O Houaiss define a modalidade como “sistema de serviço de certos restaurantes em que o freguês, pagando um preço fixo, pode comer à vontade as diversas especialidades que a casa oferece”. Mas se a gente refletir um pouco mais verificará o quanto é louco e sem sentido um rodízio de carnes. Garçons e garçonetes correndo pra lá e pra cá, cortadores com seus facões retalhando nacos de carnes bem ou malpassadas, gordas ou magras, tenras ou duras —geralmente espirrando sumos e gorduras pra todo lado.

Quando se comenta sobre os rodízios —tem rodízio de salada, de peixe, de sorvete e, pasme!, de pizza, bobagem que o campo-grandense aprecia sobremaneira— com estrangeiros, verifica-se as mais curiosas reações: alguns imaginam que o boi (ou vaca) vem inteiro, outros acham maravilhoso, a maioria, porém, acha muito insólito, principalmente quando se fala de coração de galinha, aí todos esbugalham os olhos. Agora pense: coração de galinha! É um tanto primitivo, meio neandertal.

Coração de galinha parece coração de gente, só que muito menor. É tão pequeno que o glutão tem de comer vários para se satisfazer, e assim de coração em coração as galinhas vão desta para melhor para satisfazer a gulodice dos comensais. Geralmente, esses músculos cardíacos de galináceos são servidos bem passados, quase torrados, bem salgados e passam por hors d’oeuvre —dos quais não se espera que sejam particularmente nutritivos, mas que excite o aparelho digestivo, que o torne exigente, e que aguce o apetite— para as carnes ditas mais nobres. Como aguçar, porém, o apetite olhando e deglutindo aqueles coraçõezinhos inertes, escuros, torrados, salgados, de galinhas que se foram desta pra melhor?

Mas tudo bem, rodízio também é alegria. Cada vez mais os garçons de sobremesa, licor e outras bebidas alcoólicas estão se tornando verdadeiros showmen, entertainners— sim eles dão um show à parte, com direito a causos, piadas, imitações e trejeitos malabarísticos com pratos, talheres, copos, garrafas, bandejas etc. Com isso está se enxergando a situação de quanto está se tornando difícil —e fácil— ganhar dinheiro no Brasil. A parte fácil é a seguinte, independente do que o cidadão exerça, seja inovador, essa tem sido a fórmula do sucesso. Agora a parte difícil é que, além de sujeito exercer o duro ofício de garçom, tem de ser também um clown, humorista, imitador, equilibrista, malabarista, maluco etc. para fazer sucesso e se destacar (e ganhar o salário de garçom). Mas, apesar de tudo, o rodízio continua sendo uma beleza, valendo a pena em cada real: afinal não é uma mera refeição, mas um espetáculo da glutonaria.

A coisa toda começa com a refeição antes do cidadão e sua família irem para a churrascaria —ela não existe, pois todos já estão reservando espaço no aparelho digestivo para a carne. Depois todos se sentam no meio-fio, na calçada, no degrau da escada ou na mureta em frente, pois, como foi dito, o rodízio é uma preferência nacional e, claro, o restaurante está sempre lotado! Depois que se sentam à mesa, todos comem aquelas chipas, amendoins, torradas, patês e vai atiçando a fome dos membros do seu entourage.

De repente, de longe, você a vê e tudo parece parar. É seu maior objeto de desejo no rodízio. Ela está molhadinha, quentinha, esperando sua boca abrigá-la —ela é a mais desejada do recinto, mas naquele momento só existem você e ela. Apesar de você já haver visto várias, deglutido centenas delas, ela é a mais espetacular, estonteante, saborosa, suculenta e gordinha picanha que seus olhos jamais viram.

Depois do primeiro encontro com a picanha você e sua família só querem saber de mais. Abre-se o sinal verde e começa a ignorância, até não agüentar mais: picanhas, filés, alcatras, cupins, lingüiças, pontas-de-costelas etc. etc., que se cuidem. Após tudo isso, você e os seus beliscam uma torta holandesa, toma um café espresso, dá uma bicada no licor e vai para casa feliz, se sentindo uma sucuri depois de comer três antas de tênis, mostrando para todos que você come mesmo e, ainda por cima, se orgulha disso, mostrando de forma (arredondada) que isso não te afeta e que seu estomago é um praticamente um contêiner —e dos grandes.

Domingo de churrasco
Concluído esse show de horror, você volta para casa, assiste o futebol, xinga o juiz, briga com a mulher (afinal domingo é dia de ficar com a família e de não assistir futebol), vê o Domingão Faustão, ri das videocassetadas, baba vendo a gostosona Patrícia Poeta no Fantástico (enquanto a patroa geme pelo Zeca Camargo, e ele nem é tão bonito assim).

E, fechando com chave de ouro (com mil perdões pelo clichê), você dá um beijinho na sua patroa (faz as pazes e garante que na semana que vem vai ser diferente), deita a cabeça no travesseiro (não sem antes dar uma olhadinha numa mesa redonda de futebol qualquer) e pensa com seus zíperes: minha vida é massa! O que faz a gente deduzir que a classe média é uma instituição que não sobe nem desce, não concede, não sai debaixo nem desocupa a moita... E lota os rodízios aos domingos.

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