segunda-feira, 29 de março de 2010

_Enfim, temos justiça?

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Grandes tragédias têm o poder de tocar, comover e mover as pessoas, tirá-las de seu estado natural de passividade, de letargia, e dar a elas uma sensação de mobilização, de pertencimento, de ação e de união difíceis de explicar. Se por um lado, porém, a comoção popular tem a capacidade de despertar solidariedade e fraternidade, por outro, pode trazer à tona aquilo que há de mais tosco e irracional nas pessoas. Aqueles que comemoraram a condenação do casal Nardoni tocando o tema da vitória da Rede Globo (usado nas finais de eventos esportivos) aceitariam uma absolvição?


Nesta segunda-feira, 29 de março, completam-se exatos dois anos do dia em que a menina Isabella Nardoni, com apenas cinco anos de idade, foi atirada do sexto andar do prédio em que o pai e a madrasta moravam. Na noite de sexta-feira passada, já adentrando a madrugada de sábado, seus algozes, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, foram considerados culpados por um júri formado por iguais e um juiz de direito os sentenciou a longas penas. “A justiça foi feita”, comemorou tristemente a mãe de Isabella, Ana Carolina de Oliveira.


Tão logo o juiz Maurício Fossen começou a ler a sentença —leitura transmitida ao vivo pelo rádio—, começou um verdadeiro espetáculo de histeria coletiva em frente Fórum de Santana, norte de São Paulo, inclusive com um espetáculo pirotécnico improvisado. O cenário lembrava espetaculosamente filmes com enredos passados na Idade Média.


Não era só por justiça que o ror que estampava a foto de Isabella em suas camisetas gritava. Nas tvs, pode-se ate ouvir canções com letras rebarbativas como: “Pega lá, pega lá, pega lá, o casal pra nós linchar (sic)”. Gritos de “joga eles pela janela” e “vamos enforcar” também eram ouvidos. Com um pouquinho de esforço a gente poderia até ver tochas, foices, facões e uma forca ou guilhotina enfeitando a frente do tribunal. Tudo isso testemunhado por câmeras de tv, fotógrafos e jornalistas, acompanhados de carros com antenas nos tetos, um enorme emaranhado de cabos e fios, microfones, celulares.


Roberto Podval, principal advogado de defesa do casal, alvo de hostilidades da turba ensandecida —inclusive agressões físicas— não conseguiu provar a inocência dos Nardoni. Era de fato a missão impossível. Podval, porém, propôs uma reflexão importante ao perguntar aos membros do juri: será que chegaríamos ao mesmo resultado [a condenação dos réus] se a cobertura da imprensa tivesse sido diferente?


Francisco Cembranelli, o festejado promotor de Justiça do caso, garantiu que não, que os réus já chegaram condenados ao julgamento não pela mídia ou pela sociedade, mas pelas provas. É possível que Cembranelli tenha razão. Mas aqui cabe outra questão: a sociedade aceitaria um resultado diferente? Uma absolvição, caso o conselho de sentença não tivesse ficado 100% convencido da culpa dos réus? A julgar pelo número e pela agitação das pessoas que correram e bateram com as mãos atrás dos camburões que transportaram o casal Nardoni de volta à prisão, mesmo após terem sido condenados dentro da lei, é difícil acreditar.


No rescaldo da cobertura da mídia, após o julgamento, a defesa adiantou que tentará anular o júri. Existem razões jurídicas para tanto e o Judiciário pode reconhecer que os réus têm o direito a um novo julgamento. Mas qual será a reação do povo?


Por mais que tudo o que aconteceu no final do julgamento revolte, é compreensível que um caso de crueldade como a tragédia que vitimou a pequena Isabella Nardoni gere revolta e provoque nas pessoas uma sede por justiça. Mas foi exatamente para aplacar esse impulso de conseguir a justiça pelas próprias mãos que as sociedades conferiram ao Estado o monopólio do uso da força, criando um órgão imparcial —o Judiciário— para mediar os conflitos sociais.


Nesse contexto, o papel da imprensa não pode ser desconsiderado. Desde o início, por possuir características únicas, o caso Isabella tomou dimensões gigantescas. Os defensores da cobertura feita pela imprensa nos últimos dois anos, dizem que o jornalismo apenas entregou aquilo que o público demandava.


Em 2008, o jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva, que estava assumindo a função de ombudsman da Folha de S.Paulo, em entrevista ao Observatório da Imprensa, questionou: "Será que o jornalismo sério precisa mesmo entregar o que o público quer, ou diz querer?". Para Lins e Silva, além de atender à demanda do público, o jornalismo precisa tomar iniciativas. "É preciso haver uma troca entre o meio de comunicação e seu consumidor para que o jornal atenda os desejos dos leitores, mas também ajude a melhorar a qualidade desses desejos".


Na mesma ocasião da morte de Isabella, alguns Estados, como o Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul, passavam por graves epidemias de dengue. O número de mortos era exorbitante, grande parte delas, crianças. A tragédia do edifício London ofuscou a catástrofe da saúde pública. Na semana que passou, os olhos do país estiveram concentrados no pequeno fórum da zona norte de São Paulo. Enquanto isso, chegou a 16 o número de crianças mortas por falta de UTI no Maranhão, feudo da Família Sarney. E a cobertura da mídia esteve próxima de zero.


E aqui chega-se a uma encruzilhada. O que é mais relevante, a morte de uma menininha de classe média da maior cidade do país ou a morte de uma grande número de criancinhas do Estado mais pobre do país? Para a mídia, o julgamento dos Nardoni significava o desfecho de uma crise —e crise, como se sabe, é o desequilíbrio criador. Mas será que a mídia escolheu a crise certa?


De fato, temos no país problemas muito mais sérios do que o julgamento dos Nardoni, mas que nunca ganham a notoriedade deste, ainda que provoquem mais e maiores tragédias. Na transmissão da tv logo após Maurício Fossem haver lido a sentença, um jornalista captou a fala de uma mulher que, aos berros, exclamava: "Enfim, temos Justiça neste país!". Temos mesmo?!

3 comentários:

WOLF disse...

Preciosa análise sobre o momento por que passa a sofrida sociedade brasileira.As coisas são tão complicadas que se confunde o papel lícito da justiça,com a fúria da comunidade todo dia espezinhada e com sede de "vingança"seja la por que motivo.
A morte de Isabela foi cruel a condenação merecida,mas o excesso da mídia e do clamor popular,ficou acima do desejado.
Teríamos que invadir o ministério da saúde e exigir que o planalto cumpra a lei e principios constitucionais,ninguém reclama,e crianças e adultos morrem em filas de espera.
A análise foi coerente a pergunta final no entanto é um alerta que não deve ser ignorado.Parabéns!

O_PRG disse...

Eu até perguntei no tuiter: se ela se chamasse THAYANNE, fosse negra, morasse numa favela, o avô materno um bebum e o pai desconhecido, haveria tamanha comoção?

Thaís Alves disse...

Concordo plenamente com a sua análise quanto ao descaso da mídia com questões tão ou mais importantes quanto o caso dos Nardoni, mas não vi requinte algum de crueldade em quem disse joga pela janela, vamos linchar, ou coisas deste tipo, pois ao me entender, direitos humanos devem ser aplicado somente a humanos e não a monstros deste tipo capazes de fazer isso com uma criança, com uma filha! É fato que a mídia manipula a opinião pública, que graças a nossa (má) educação é cada vez mais manipulável. Mas é fato também que este caso merecia todo o destaque que teve, e que o sentimento de justiça feita ao menos uma vez, regozija o coração. Se temos justiça no país? Entendo que não. Mas tivemos justiça para a Isabella. E devemos brigar para que estardalhaço seja feito muito mais vezes, por muito mais pessoas e que este tenha ficado como um bom exemplo. Ah sim, e os Nardoni já estavam condenados por todos sim, mas pelas provas incontestáveis que foram apresentadas desde o início do caso. Ainda bem que pelo menos desta vez, o povo não aceitaria tudo terminar em pizza. Adorei o seu texto! bjs