terça-feira, 12 de janeiro de 2010

[Cerveja e propaganda de cerveja]

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Em artigo veiculado na Folha de S.Paulo em 18 de dezembro/2009, Rogério Cezar de Cerqueira Leite, físico e professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), esculhamba a qualidade da cerveja produzida no Brasil: "É inexplicável que sejam tão omissas as autoridades brasileiras quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo".

Sob o título "A cerveja: bebendo gato por lebre", o artigo desenvolve o argumento de que "aparentemente, o receio era o de que a população cervejeira, ao ser exposta a diferentes e mais sofisticados exemplos, desenvolvesse algum bom gosto e, consequentemente, passasse a demandar cerveja de qualidade. A cerveja brasileira (com pequenas e honrosas exceções) é como pão de forma: mata a sede, mas não satisfaz o paladar exigente".

Não demorou muito tempo pra indústria cervejeira retrucar. Em 30 de dezembro, em artigo sob o título "A cerveja e o orgulho de quem faz o melhor", na mesma Folha, Silvio Luiz Reichert, químico, mestre cervejeiro pela Doemens Fachakademie, da Alemanha, vice-presidente de Inovação e Desenvolvimento Tecnológico da Anheuser-Busch Inbev. Diz ele que "a indústria brasileira de cerveja zela pela qualidade de seu produto. Ela sabe que seu consumidor é exigente e tem muito bom gosto".

Pra refutar Cerqueira Leite, Reichert argumenta que "para deixar claro que não aprecia o produto que é feito no Brasil e consumido e aprovado pelos brasileiros, o autor se vale de números errados e premissas levianas que não levam à conclusão por ele desejada, a de que a cerveja brasileira é ruim porque elaborada de maneira enganosa, na base da 'malandragem', utilizando-se de produtos de baixa qualidade, ludibriando o consumidor e afastando-o do que o autor considera 'bom gosto'".

Reichert finaliza afirmando que "esse nível de desinformação se choca frontalmente com o patamar de excelência em que se encontra a indústria brasileira de cerveja. Trata-se de um setor que investe permanentemente em pesquisa e inovação, dispõe das mais modernas tecnologias e zela pela qualidade de seu produto porque tem plena consciência de que, diferentemente do que pensa o autor do artigo, seu consumidor é exigente e tem muito bom gosto."

Mas é difícil ficar do lado do cervejeiro. Primeiro, porque os argumentos do físico são mais consistentes. Além de tudo, Reichert é representante da indústria cervejeira brasileira que, pro meu paladar, não faz realmente uma boa cerveja. Não sou exatamente um zitolibador, mas há muito tempo —exatamente desde que Brahma e Antártica passaram a ser manufaturadas pela mesma empresa— noto que a nossa cerveja vem piorando a olhos vistos. Ou bocas degustadas.

E tudo piorou em relação à cerveja brasileira. Sabor, qualidade, durabilidade. Mas vou
ficar numa área que conheço: marketing e comunicação: certa feita, entreouvi num botequim um comentário que me chamou a atenção: "quem faz propaganda de cerveja acha que quem bebe é retardado." Fiquei lucubrando e fui obrigado a dar toda a razão. Meus companheiros publicitários fazem propaganda estúpida pras diversas marcas de cerveja. Utilizam conteúdo abusivo, apelativo ou de mau gosto. No mais, peças são chulas e estúpidas, servindo apenas pra manter o nome da empresa na mente das pessoas.

Vivem de inventar modismos, piadinhas, estilos, turminhas, giriazinhas e tudo mais para insultar o intelecto de quem bebe. O slogan da cerveja mais vendida do mercado é "a cerveja que desce redondo" é estúpido. Se o nível continuar caindo e for, cada vez mais, apelativo, sugiro que proibam propaganda de bebida alcoólica. Assim, pelo menos podemos beber com a consciência tranquila sem ter alguém te chamando de idiota. Ou ouvir "olha a maminha da Renata" ou "experimenta a picanha do Valmor".

Uma cerveja boa mesmo não precisa de propaganda em massa e comerciais a cada 30 segundos para fazer com que você jamais se esqueça dela. Uma cerveja boa precisa de preço e qualidade equilibrados. Uma cerveja boa você bebe uma vez e se apaixona. O fim da criatividade. Publicitários sentem saudades de quando o uso de mulheres seminuas era liberado (e vital) nos anúncios de cerveja. já há algum tempo os publicitários que cuidam da propaganda de cerveja estão sofrendo de um sério déficit de criatividade. Foi-se o tempo em que as pessoas comentavam a veiculação da nova propaganda da cerveja "x" ou "y" no dia anterior.

No princípio era o verbo, a propaganda se apegava a simbologias e mensagens simples, algo que exigisse pouca sofisticação intelectual pro entendimento do público, assim como o baixinho da Kaiser ou um bando de soldados marchando e cantarolando, da Malte 90. O humor raso e a mensagem quase nula fazem parecer que mal existiam publicitários de verdade na década de 1980. Chega os anos 90s e, de repente, fiat lux! Os marqueteiros de plantão associaram os bebedores de cerveja ao gênero masculino e passaram a explorar a imagens de mulheres semi-despidas e jogadores de futebol.

Não interessa que a esmagadora maioria dos homens morra sem nunca namorar uma "loira da Skol" ou uma "gostosa da Schin" ou a "boa da Antarctica", e até mesmo que os bebedores de cerveja estejam longe de qualquer estereótipo dos atletas saudáveis e milionários. O importante é que esse tipo de propaganda combina as mulheres que os consumidores gostariam de ter com os homens que gostariam de ser.

O tempo foi passando e a fórmula mágica quase inesgotável de mulheres gostosas e jogadores de futebol não envelhecia. Os publicitários e suas estratégias não evoluíram, mas a sociedade sim. Movimentos feministas e religiosos entulhavam processos contra as marcas de cervejas que, a cada novo comercial, banalizavam a imagem da mulher como objeto. Propaganda desse tipo tornou-se politicamente incorreta e as constantes intervenções legais trataram de decretar sua extinção. Quanto aos jogadores de futebol, são cada vez mais raros serem requisitados para este tipo de publicidade. Até o consumidor mais acéfalo percebia que o Bebeto, quando fazia o número um a cada gol marcado, nunca tinha provado uma Brahma. Ou mesmo que o Ronaldo, em propaganda mais recente, é incapaz de levar o copo com o precioso líquido dourado à boca.

O mercado publicitário cervejeiro passou por uma fase de pragmatismo. Sem seus principais garotos-propaganda, os publicitários tiveram que apelar para a inteligência e criatividade para manter as dispendiosas contas de cervejas, e isto era o que eles mais temiam. Tartarugas, siris, e toda a fauna brasileira não foram suficientes para despertar qualquer modificação nas vendas de bebidas. Pior, tratou de estimular o consumo entre crianças, que se ligavam na bicharada, para desespero da saúde pública, que constata que o primeiro contato com o álcool ocorre cada vez mais cedo.

Lançar bordões é altamente arriscado na publicidade, pois se eles pegam viram sucesso total, mas se fracassam, o esquecimento e a indiferença do público acabam por desperdiçar todo o investimento de uma empresa. O fato é que, depois do desuso de mensagens superficiais e de mulheres seminuas, falta de talento e mau gosto está virando lugar comum entre os publicitários.

É colossal o consumo de cerveja no mundo, inclusive no Brasil. Em geral esse consumo é puramente hedonista: não se be cerveja como alimento, não se bebe cerveja como remédio, não se bebe cerveja a título de rito ou culto (como acontece com o vinho), não se bebe cerveja por dor-de-cotovelo. Bebe-se cerveja apenas pelo prazer de viver —e de conviver. Os bebedores solitários de cerveja são poucos.

Praticamente no mundo inteiro a cerveja é consumida à temperatura ambiente ou da adega, o que significa ligeiramente mais fria. Nada disso, porém, se compara ao arraigado hábito nosso que demanda a cerveja quase sempre geladinha, embora a propaganda também tenha inventado a bobagem de ser "estupidamente gelada".

Entretanto, fabricantes brasileiros só fazem piorar a qualidade da maioria das nossas cervejas (conheço uma honrosa exceção: Eisenbahn, de Santa Catarina, tão boa quanto difícil de encontrar em nossos bares e supermercados). Concluindo: a qualidade da cerveja brasileira, vai de mal a pior, obrigado. Assim como a propaganda da cerveja brasileira.

Um comentário:

Sandro Ataliba disse...

Não bebo cerveja, por opção e paladar, mas sobre as propagandas eu concordo plenamente. A última que vi da Brahma, por exemplo, que mostra torcedores incitando o povo à guerra na Copa do Mundo é de um mau gosto e uma incorreção desmedidos.
Mas o problema é que propagandas 'burras', com bordões e personagens famosos funciona com a maioria da população. E a forma nem é nova (vide Zorra Total, A Praça É Nossa, entre outros). Parece mesmo é que não é só quem bebe cerveja que se passa por idiota, mas a população em geral, que continua consumindo e repetindo tais hábitos.