quinta-feira, 20 de agosto de 2009

_Que droga!

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Há alguns anos, o médico sanitarista baiano Eduardo Jorge, que foi secretário de Saúde de São Paulo nas gestões Erundina e Marta Suplicy, afirmou que é totalmente a favor da legalização das drogas no País. Na avaliação do médico, a política de combate às drogas utilizada hoje é “ineficiente e burra”, segundo os jornais da época. Jorge disse mais: “o melhor modo de controlar, diminuir e ter acesso às drogas é a legalização. Após isso, o governo deve prestar serviços de assistência social e de saúde para as pessoas que buscam as drogas”.

Essa opinião tem muitos defensores no mundo inteiro. Não é afetação ou vanguardismo de um médico exótico. De acordo com a opinião dele e de muitos outros especialistas do mundo inteiro, a política repressiva de combate adotada pelos os EUA, que o Brasil segue sem questionar, é a irmã siamesa do narcotráfico. Como isso é um mercado, cada vez que a polícia apreende uma determinada quantidade de drogas, provoca o aumento do preço do produto e enriquece os narcotraficantes, com as conseqüências que todos conhecem.

Na opinião de Jorge e outros especialistas brasileiros, o Brasil deveria seguir a política européia de combate às drogas ilícitas, ao invés de reprimir os usuários. A política européia, da Holanda por exemplo, procura descriminalizar e legalizar a droga para ter acesso aos dependentes. Assim é possível dar apoio para o dependente deixar o vício. A liberação das drogas chamadas “pesadas”, como heroína, cocaína, LSD e outras, não iria aumentar o número de viciados. A legalização na Holanda não aumentou um grama o consumo e diminuiu muito a violência e as doenças ligadas ao uso de drogas.

Alívio ou veneno? Alimento dos deuses ou maldição do diabo? Hábito natural ou desvio social? Prazer ou sofrimento? Não existem respostas fáceis e muito menos certas quando se fala de drogas. Quase tudo o que se escreve ou lê a respeito reflete essa ambigüidade. Não há consenso. Em tudo que se publica, verifica-se que quase não há indecisos sobre o tema. Ou seja, não importa de que lado as pessoas estejam, o fato é que todos têm opinião formada – e arraigada – sobre o uso de drogas. É surpreendente encontrar tal convicção em assunto tão complexo e polêmico, com aspectos médicos, econômicos, sociais, históricos, éticos e morais tão sinuosos.

Mas uma coisa é certa sobre as drogas: é preciso haver informação. Informação de qualidade, desvinculada da moral, do poder econômico e das forças políticas. Mas que ninguém se iluda: o primeiro efeito da legalização das drogas seria o aumento imediato do consumo, por várias razões. Primeiro, o preço cairia muito: o custo de produção e distribuição da cocaína equivale a 5% do seu valor atual. Uma porção de maconha custaria o mesmo que um saquinho de chá. Não bastasse esse incentivo, o estigma social dos usuários seria menor: ninguém precisaria disfarçar ou se esconder para fumar um baseado. Ou seja, o acesso às drogas, por mais rigorosa que fosse a legislação regulando seu comércio, seria muito mais fácil e seguro do que é hoje.

Nobel de Economia, Milton Friedman pensa que todas as drogas deveriam ser vendidas como acontece com os remédios: nas famácias. Em seu mundo ideal, ele até vislumbra a heroína light e a cocaína de baixo teor. A idéia parece extravagante e acarreta várias desvantagens, mas teria pelo menos um benefício inconteste: obrigaria os usuários a procurar um médico, o que permitiria ao governo saber quantas pessoas consomem o quê. E drogas produzidas legalmente teriam controle de qualidade. Hoje, a cocaína que chega ao usuário tem até 90% de impurezas.

A legalização permitiria taxar a venda de drogas. O dinheiro financiaria a educação, a prevenção e o tratamento de usuários. Diante dos preços atuais, mesmo um hiper-imposto de 300% quebraria o tráfico e o comércio ilegal. Some-se a isso um controle sobre as armas e a criminalidade despencaria. Os problemas socioeconômicos iriam se manifestar em algum lugar, mas a quantidade dos crimes com morte cairia, porque o número de armas seria reduzido e a fonte de financiamento para comprá-las estaria seca. Áreas sem ordem e sem lei poderiam ser finalmente reintegradas à cidade.

Outro benefício com certeza seria a redução drástica da corrupção policial e em setores da Justiça. Os narcotraficantes incrementaram a figura do “crime organizado”, que passou a ser realmente “organizado” a partir do momento em que policiais de todas as patentes e servidos públicos de todas as áreas passaram a receber parte dos seus salários (a parte mais gorda, diga-se) dos traficantes internacionais de drogas.

Da maneira como foi formulada, a guerra contra as drogas está perdida desde o dia em que alguém escolheu como meta a erradicação completa e total. Tal façanha era e sempre foi impossível, admitem os especialistas. Mas o fato é que só agora isso saltou aos olhos da intelligentsia. Difícil encontrar um administrador público que acredite de verdade que é possível acabar com as drogas. Mesmo os funcionários da DEA, agência norte-americana de combate ao tráfico, admitem isso.

Agentes públicos em muitos países buscam uma diretriz que substitua a antiga utopia. E estão encontrando alternativas promissoras. A mais difundida é a redução de danos, que evita o erro anterior. Já que erradicar as drogas é impossível, tenta-se reduzir os estragos que elas causam aos usuários e à sociedade. Ou seja, as mortes, as doenças e o crime. Faz parte desse espírito, por exemplo, oferecer seringas a usuários de drogas injetáveis para evitar que eles compartilhem agulhas e contraiam doenças. Ou, como ocorre mundo afora, substituir uma droga ilegal por outra que cause menos prejuízo à saúde.

Uma revolucionária experiência ocorre na Suíça. Lá, quem quiser usar heroína pode obtê-la de graça do governo. O Estado construiu clínicas para os usuários, com direito a parede branquinha, maca com lençol, seringa e até um enfermeiro para aplicar a injeção. Resultado: o tráfico e as mortes por overdose acabaram, todos os usuários estão sob cuidados médicos e muitos estão deixando o vício. O Brasil também anda experimentando. Em São Paulo, dependentes de crack foram estimulados a consumir maconha. Em oito meses, quase 70% deles largaram as duas drogas. Atrás de opções, os agentes públicos estão redescobrindo as campanhas de educação e prevenção. Segundo o instituto de pesquisas norte-americano Rand Corporation, nos anos 1990 esses programas foram 12 vezes mais efetivos que o combate ao tráfico e o encarceramento.

Agora, após um ano de estudos, entrevistas, reuniões e debates, a Comissão Latino Americana sobre Drogas e Democracia publica relatório avaliando a atual política de drogas e seus impactos na América Latina. Desde o combate ao narcotráfico até as relações internacionais que permeiam o tema, passando pelos esforços para reduzir a produção, transporte e comércio de entorpecentes, o documento busca situar os países da América Latina no contexto do tráfico internacional de drogas, expondo falhas e acertos, e buscando indicar saídas para a questão.

O relatório considera esta uma guerra perdida. Três ex-presidentes latino-americanos, entre ele o professor Fernando Henrique Cardoso, demandam uma nova estratégia para combater o tráfico de drogas e suas consequências de violência e corrupção. Durante décadas, a violência na América Latina foi associada a insurreição armada e à repressão militar contra-revolucionária. Hoje, com ex-rebeldes ocupando escritórios do governo, outro fantasma tomou o palco: a violência armada ligada ao tráfico de drogas. A violência que alimenta um negócio multimilionário, o que estende a insegurança e o medo em cidades grandes e pequenas, drenando enormes recursos dos estados.

Mas nem os críticos da atual política querem paz para os traficantes. Nesse campo, as sugestões procuram otimizar o combate. Alguns propõem o controle eletrônico das transações financeiras, regulamentação dos paraísos fiscais e vigilância sobre os produtos químicos necessários para a produção das drogas. Estes são vendidos sem qualquer controle.

Qualquer coisa que é proposta com relação ao conceito drogas sempre esbarra no preconceito. A primeira coisa é o autor ser tachado de apologista – eu mesmo já passei por isso: escrevi um artigo sobre o assunto há alguns anos e tive problemas com as autoridades e com o dono do jornal. Sempre associada ao “vício”, a palavra "droga" e seus diversos axiomas e paradigmas, sempre suscitou debates inflamados, críticos hipócritas, defensores medrosos ou análises pouco profundas. Não necessariamente drogas se tornam vícios.

A frase “sexo, drogas e rock'n'roll” foi por muito tempo usada abertamente e acabou criando um estigma de que todo mundo que gosta desse gênero musical é drogado. As casas e bares onde é tocado esse tipo de música sofrem perseguições por este preconceito. Mas as “drogas” estão por toda parte e nas casas mais “insuspeitas”. Um exemplo disso é a grande quantidade de médicos drogados. Quando é noticiado um crime hediondo, a primeira coisa que as pessoas fazem é afirmar que o criminoso é ou está drogado. Uma afirmação que, mais do que culpar a droga pelo ato, serve de atenuante ao criminoso. O tiro aí sai pela culatra. Existem pessoas más e pessoas boas que usam drogas. A droga não faz com que pessoas boas se tornem más ou vice-versa.

Diante de tudo isso, uma coisa fica muito clara: está mais do que na hora da América Latina – e o Brasil a reboque – romper com as políticas de drogas impostas pelos Estados Unidos. Líderes da região deveriam chamar a guerra contra as drogas pelo seu verdadeiro nome – fracasso, farsa, hipocrisia – e dizer a Washington que a América Latina não mais contribuirá com um esforço vergonhoso e desorientado que corrói as perspectivas econômicas e a coesão social da região. Quando os EUA mostrarem o inevitável punho cerrado e brandir suas ameaças de sanções, pode-se simplesmente lembrar que, quando se lida com amigos, a honestidade, não a hipocrisia, é em geral a melhor política.

Jamais existiu, ao longo da história da humanidade, uma sociedade livre de drogas – e, pelo visto, nunca haverá. As drogas não vão desaparecer; portanto, o melhor é atenuar os danos que causam. O melhor caminho para América Latina, que possui alguns dos grandes produtores mundiais, seria a legalização. Esta opção, entretanto, ainda é uma alternativa muito radical; é uma solução de bom senso, mas difícil de ser implementada. Por enquanto os países da América Latina poderiam reduzir o custo social e da guerra contra as drogas adotando duas estratégias: o conceito de “redução de danos” e a criação de uma “coalizão de anti-drogas”, para resistir ao modelo/sistema policial e proibicionista dos EUA, que se provou ineficaz, infrutífero e corruptor.

Faz tempo que falo desse assunto: a guerra às drogas fracassou. Agora é a hora para substituir uma estratégia ineficaz por políticas de droga mais humanas e eficientes. Políticas proibicionistas baseadas na erradicação, interdição e criminalização do consumo simplesmente não funcionaram. A violência e o crime organizado associado com o tráfico de drogas se mantêm como problemas críticos países latino-americanos. O sub-continente continua sendo o maior exportador mundial de cocaína e maconha, e está se tornando rapidamente um provedor relevante de ópio e heroína. Hoje, estamos mais distantes que nunca do objetivo de erradicar as drogas. Que droga! É hora de mudar!

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