quinta-feira, 30 de abril de 2009

Permanencia da palavra escrita


Mais importante do que saber se o texto jornalístico deve ou não ser literário, nos dias de hoje, em que a palavra escrita está para desaparecer, segundo alguns profetas apocalípticos, é acreditar que a arte de escrever permanecerá, independente dos mídia que se venha a utilizar. Littera scripta manet – a palavra escrita permanece, profetizou Horácio na Roma Antiga de quase 2 000 anos atrás. O espantoso é que, em pleno terceiro milênio, com a revolução digital em plena ebulição, a palavra escrita continua em pé, revigorada pelas novas tecnologias.

Apesar das várias roupagens inovadoras que os meios de comunicação vêm experimentando, a palavra escrita não foi destronada da posição central que ocupa na vida de todos nós. Fala-se com arroubo sobre os inesgotáveis recursos de novas tecnologias, como o vídeo ou a realidade virtual, mas qualquer reflexão sobre o tema invariavelmente orbita em torno da matéria-prima da comunicação – o texto. Até porque é impossível planejar ou criar qualquer obra para essas ou outras mídias sem o uso do texto.

Na verdade, a palavra escrita não apenas permanece – ela floresce como trepadeira nas fronteiras da revolução digital. A explosão de mensagens via correio eletrônico (email no jargão colonizado dos internautas) constitui-se no maior surto de correspondência já desde o século XVIII. Hoje, o mais novo desafio dos “infonautas” – os astronautas da informática – é justamente inundar o espaço cibernético com zilhões e zilhões de gigabytes de devaneios no novo sistema de enviar e receber correspondência via Internet.

Para o cidadão comum que, felizmente, não precisa se atormentar com as minúcias do jargão informático, a explosão do texto passa despercebida, pois ela não usa papel. Vagas nuvens de elétrons viajando na velocidade da luz substituíram o produto de árvores cortadas entregue por carteiros. Essa revolução não se limita apenas a agradar os ecologistas ou a diminuir o tamanho dos lixões nas grandes metrópoles. Ela marca a maior mudança ocorrida nos meios de comunicação: as palavras foram desacopladas do papel como suporte.

É verdade que o texto, no alfabeto latino, continua sendo composto por 26 caracteres ou letras, como nos tempos de Horácio. Mas ele se libertou da opressão do suporte papel, que o sepultava e distanciava. Hoje, ele se tornou tão pioneiro quanto a mais inebriante novidade da mídia eletrônica.

Fica evidente que a reviravolta de hoje está produzindo uma transformação tão radical quanto a que a prensa tipográfica gerou meio milênio atrás. Para começar, estamos colocando abaixo as fronteiras arbitrárias que separavam autor, editor e leitores. Essas figuras não existiam antes da invenção dos tipos móveis, e não sobreviverão a esta primeira década do século. Tal e qual os monges de antigamente, que simultaneamente escreviam, editavam e liam, os internautas da informação digital que hoje consultam bancos de dados eletrônicos desempenham rotineiramente as mesmas funções: pesquisam e selecionam, assimilam, editam e criam e/ou recriam seu próprio texto. Só que instantaneamente – e em tempo real.

Nos tempos de Gutenberg, o prelo deu vida aos textos e os difundiu, mas com o ônus inalienável de tomá-los formais e imutáveis – as palavras imobilizavam-se no papel como insetos pré-históricos aprisionados no âmbar. Os leitores sabiam que, no máximo, podiam lê-las. Alterá-las, jamais.

Tal como o temos hoje, o texto eletrônico transformou-se num novo meio de comunicação, que combina a fixidez da prensa com a possibilidade de alteração do manuscrito. Aperta-se uma tecla, e centenas de linhas evaporam-se da tela do computador numa fumaça virtual; acionando-se outra, elas reaparecem num instante. Separado do precário papel, o texto agora pode ser tudo, menos indestrutível.

A imortalidade talvez seja a menor das surpresas que o texto eletrônico nos reserva. Os entusiastas do vídeo sustentam que as imagens são intrinsecamente mais cativantes do que as palavras, ignorando, contudo, a diferença maior entre ambos: enquanto o vídeo é captado pelos olhos, o texto ressoa direto na mente – além do que a imagem acaba se transformando em palavra em nossa mente. O texto nos convida a ir buscar imagens que completem as palavras fornecidas por ele, ao passo que o vídeo exclui tais excursões mentais. Enquanto não houver uma ligação física entre o cérebro e a máquina, o texto continuará nos oferecendo o caminho mais direto entre a mente e o mundo exterior.

E o vídeo – ou qualquer outro suporte moderno da imagem – padece de outro problema: a confiabilidade, que diminui em razão da crescente capacidade de manipulação da forma, através de softwares cada vez mais especializados. Ao chegarmos ao final desta década, lembraremos de 1992 e nos espantaremos com o fato de a filmagem de policiais americanos espancando um cidadão ter lançado em tumulto a população de Los Angeles.

A era das inocentes filmadoras portáteis se encerrará à medida que adolescentes deste início de milênio forem adquirindo o hábito de manipular, através dos computadores, a mais prosaica das imagens para transformá-la em ficção vívida e convincente. Não acreditaremos mais em nossos próprios olhos quando assistirmos a um clipe ou um filme que mescle ficção com realidade. Nesse mundo, o texto permanecerá como um indicador primário de fidelidade. As imagens trafegarão em rede eletrônica em linguagem multimídia, tendo as palavras como seus verdadeiros guarda-costas, da mesma maneira como os sábios medievais adicionavam notas explicativas nas margens de seus escritos.

É possível argumentar que palavras podem das ser tão falsas quanto imagens. Mas texto mantém a nossa credibilidade, porque o empenho intelectual necessário para decodificar as palavras nos mantenha mentalmente alertas, enquanto que os estímulos visuais incentivam a passividade. Estudos realizados durante a Guerra do Golfo – o primeiro conflito a ser totalmente mostrado ao vivo pela tv –, em 1991, apontam para essa possibilidade: constatou-se que as pessoas que leram sobre a guerra nas publicações diárias compreenderam muito melhor o que estava acontecendo do que os ávidos telespectadores que passaram dias inteiros acompanhando boletins ao vivo pela televisão.

Exemplos da perenidade do texto estão em toda parte. O exemplo mais insólito de encarnação eletrônica de textos foi visto em um instituto budista da Califórnia. No interior do santuário, enormes caixas cilíndricas de orações em forma de mantras, impressos em papel com microtipos de última geração. Um monge explicou que o mecanismo que fazia as caixas girar emitia ondas de energia positiva. Quanto mais mantras contivessem as caixas, maior o benefício.

Imagine-se as conseqüências se alguém concluir que os computadores ligados em rede ao redor do planeta equivalem a uma roda de oração virtual do tamanho do mundo, esperando apenas que o vírus certo propague mantras em seus interstícios – exatamente o tipo de imortalidade que agradaria a um romano temente a Deus, como Horácio.

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