terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Politicamente (in)correto

Creche geriátrica. Estava escrito numa placa. Levei alguns segundos pra compreender o significado daquela estranha expressão. Não que a coisa seja desconhecida, mas ver tal placa ao vivo e a cores ultrapassou de longe as minhas piores expectativas: denominação politicamente correta pra asilo, isto é, instituição de assistência social onde são abrigados os velhinhos (palavra politicamente incorreta, reconheço). Mary Saldanha, minha mulher, que estava ao meu lado, ao ouvir o vocábulo asilo logo me contestou: "Provavelmente é algo mais que um asilo —argumentou ela—, deve ser um estabelecimento com gangorra, balanços, escorregas e outros brinquedinhos pros idosos".

Ironia e derrisão à parte, creche geriátrica é de morrer de rir. Ou de chorar. Mas uma barbaridade. Ridículo!, disse pros meus botões. A que ponto chegamos. Será apenas o medo das palavras? Não se sabe, mas com certeza é a bobagem do vocabulário politicamente correto, um dos aspectos da atitude politicamente correta que parece ser exigência para a "vida-civilizada-em-sociedade" de hoje em dia.

Penso que a febre do politicamente correto é, além de tudo, burra. Dar nome aos bois é a função da língua e, portanto, utilizar-se constantemente de eufemismos só pode representar duas coisas: hipocrisia ou medo. Ou as duas coisas juntas. A língua portuguesa até que é bem precisa; não tanto quanto o alemão, mas à frente do francês, por exemplo, em que uma mesma palavra quer dizer guardanapo, toalha e absorvente (!); abraço e beijo podem ser expressos também por um mesmo vocábulo e, por fim, namorado e amigo também podem ser expressos por uma mesma palavra (ou a putaria é totalmente disseminada ou a confusão deve ser grande); ou do inglês, que tem um verbo só pra ser e estar, o verbo to be.

É nessa de não dar nome aos bois (mais por hipocrisia do que por burrice, acredito), que há palavras que foram banidas das rodas de pessoas que se dizem politicamente corretas e socialmente apropriadas. Mas quem baixou um decreto proibindo de chamar cego de cego, puta de puta, surdo de surdo, doido de doido, bicha de bicha, mongolóide de mongolóide e aleijado de aleijado, por exemplo?

Mas não pára por aí. Se você já estava se achando o mais politicamente correto do mundo por utilizar o deficiente com os seus diversos qualificativos, cuidado. Recentemente, num programa desses que passam à tarde na tv, a representante de uma entidade de atletas deficientes conclamava à utilização da expressão, pra ela "não-preconceituosa", atletas-eficientes. Eficientes?! Aí já é demais! E essa história não significa que esse discurso é preconceituoso. Estou apenas na defesa do "nome aos bois" (não, não estou chamando deficientes de bois, e nem duvidando de sua eficiência para o trabalho!).

Mas o que é, afinal, o politicamente correto? Não tem uma resposta simples, mas um dos significados da expressão diz que é um modo de falar que supostamente não fere os sentimentos e a suscetibilidade de pessoas pertencentes a grupos marginalizados ou desavantajados ou ainda ambas as coisas. Surgiu nos EUA, país que tem uma sólida tradição de defesa dos direitos humanos, mas por outro lado, tem também uma robusta base de preconceitos: o país de Thomas Jefferson é também a pátria da Ku Klux Klan.

À medida que os diversos grupos e estamentos (étnicos, políticos, profissionais, religiosos, sociais, esportivos etc.) fizeram valer seus direitos, o vocabulário teve de mudar. Entretanto, como sói acontecer nesses casos, o tiro em muitas situações saiu pela culatra: o que era uma sadia reação aos preconceitos e à discriminação tornou-se caricatural, debochado, tosco. Não poucas vezes, ridículo!

Tal e qual o conhecemos atualmente, o politicamente correto representa a entropia do pensamento político. Como tal, é de impossível definição até porque carece de um verdadeiro conteúdo. Seu fundamento básico é aquele do vale tudo. Nele encontramos restos de um cristianismo degradado, de um socialismo reivindicativo, de um economicismo marxista e de um freudismo em permanente rebelião. Se compararmos a demolição do comunismo com uma explosão atômica, diríamos que o politicamente correto constitui a nuvem radioativa que acompanha a hecatombe.

O politicamente correto consiste na observação da sociedade e da história em termos maniqueístas. O politicamente correto representa o bem e o politicamente incorreto representa o mal. O supra-sumo do bem consiste em buscar as opções e a tolerância nos demais, a menos que as opções do outro não sejam politicamente incorretas; a quintessência do mal encontra-se nos dados que precederiam à opção, quer sejam estes de caráter étnico, histórico, social, moral e sexual —e inclusive nos avatares humanos. O politicamente correto não atende à igualdade de oportunidade alguma no ponto de partida, senão, ao igualitarismo nos resultados no ponto de chegada.

Ninguém inventou o politicamente correto: ele nasceu como conseqüência da decadência do espírito crítico da identidade coletiva, quer seja esta social e nacional, quer seja religiosa ou étnica. O politicamente correto é de uso comum entre os intelectuais desarraigados, porém como é contagioso, é normal que outras pessoas estejam contaminadas sem que por isso estejam conscientes disso.

A desintoxicação é difícil, na medida em que vivemos em um mundo no qual os meios de comunicação (e a palavra mídia —o termo é usado errado inclusive, até porque midia é plural de midium—, é em si mesma um barbarismo politicamente correto) adquiriram uma importância desmesurada e são precisamente estes os encarregados do contágio massivo. O primeiro remédio consiste em tomar consciência de que o politicamente correto existe e que circula sobretudo através de nosso vocabulário. O segundo, seria tomar consciência de que o "eu" forma parte de um "nós" e de que este "nós" deve proteger o "eu" contra o "que se diz…" politicamente correto.

Outro remédio consiste em pôr em prática a consciência de renúncia a toda terminologia politicamente correta e às ideologias sobre as quais se apóia. Por exemplo, há que dizer "albino" em lugar de "hipopigmentado", "surdo" em lugar de "deficiente auditivo", "velhice" em lugar de "terceira idade" (ou o insolente "melhor idade"), "masturbação" em lugar de "auto-ajuda", "adúltero" em lugar de "pessoa casada com atividade sexual paralela". Um gago nunca será um loquaz intermitente.

E quais são os estragos produzidos pelo politicamente correto? Consistem fundamentalmente em confundir o bem e com o mal, sob o pretexto de que tudo é matéria opinativa. Os alvos prediletos são a família, as tradições e, sobretudo, a crença nisto, visto que para o politicamente correto só há uma verdade —o resto é falso. O politicamente correto está contaminando toda a cultura e criando uma nova e dissimulada forma de censura, muito pior porque hoje a censura é velada; é a censura do politicamente correto. E uma das principais vítimas é o humor, o humor escrito e o falado. Humor que pede licença não é humor. Cada vez mais grupos, grupelhos, guetos, classes, pessoas públicas e privadas reivindicam imunidade contra a crítica. Experimente chamar um homossexual de veado, bicha, baitola ou qualquer outra expressão similar; você logo será acusado de homofóbico —como se ser homofóbico fosse um crime.

O humor tem que ser crítico, ora! A liberdade de opinião é cada vez mais filtrada e o que temos hoje é uma liberdade melita. Isso afeta os jornalistas e os meios de comunicação, que ficam se cerceando, adivinhando processos que podem sofrer se vão contra o politicamente correto. Mas não se pode nunca esquecer que não existe nem jornalismo nem humor a favor. Jornalismo e humor são oposição.

Precisamos do humor e do jornalismo para não morrer de realidade. A vida tem de ser pensada através do humor. O humor é o menor caminho entre duas pessoas. A primeira ação do pai com o filho é um ato de humor: faz careta para o filho rir. Todos querem o riso através da vida, o riso que pode ser traduzido em felicidade. O espantalho é colocado na plantação não para espantar os pássaros, mas para que eles riam e achem o fazendeiro um cara legal. De todas as artes humanas, a que mais se destaca é o humor, o ato de levar o riso às pessoas —este riso que envolve crítica, conhecimento, informação, poesia e simples divertimento.

Como detectar uma pessoa “politicamente correta”? Uma pessoa politicamente correta considera-se a si mesma tolerante, porém não pratica a tolerância… É verdade que o politicamente correto nos espreita e se apresenta sempre com argumentos inocentes e de fácil assimilação. Trata-se de rechaçar sua inocência e repudiar essa facilidade de assimilação. É necessário, do mesmo modo, prevenir-se contra o mimetismo de falar como os demais. Repito ainda o risco de parecer pesado, o vocabulário politicamente correto é o principal veículo de contágio. Em qualquer caso, há que afirmar que o politicamente correto é uma fé débil e que, como tal, não resiste a uma enérgica aplicação do espírito crítico. Não temos que ser submissos aos sentimentos e opiniões generalizadas: o espírito contraditório mais obtuso vale sempre mais do que a livre aceitação do pasto midiático.

O politicamente correto prepara o terreno de forma ideal para as operações de desinformação e para a expansão da globalização. Quando todo o mundo acreditar que as verdades podem ser objetos de truque, de que não existem nem verdades nem mentiras, o mundo estará preparado para receber a mesma propaganda, de participar da mesma pseudo-opinião pública fabricada para consumo universal. E esta pseudo-opinião pública aceitará qualquer ação, inclusive as mais brutais que indefectivelmente irão em benefício dos manipuladores.

A linguagem, a capacidade de comunicação através da palavra, é o aspecto mais característico da espécie humana. A linguagem, porém, não serve só pra comunicação. Ela é também um veículo de crenças, de valores, de paradigmas comportamentais, de ação, e, como tal, tem uma história. Também é preciso lembrar que, por vezes, as palavras acabam por assumir uma aura de magia, para o bem e para o mal. Daí a força das pragas, das maldições, dos xingamentos.

As palavras, observa o antropólogo Bronislaw Malinowski, têm um poder próprio —elas fazem as coisas acontecer; em sua função primeira, são olhadas como um modo de agir mais do que a expressão de um pensamento. Corresponde, pois, a um determinado cenário histórico. É a expressão da revolta de grupos marginalizados em busca do que respeitam, do que merecem... Ou acham que merecem. E traduz séculos ou milênios de humilhação e de opressão, sutil ou brutal, quando não sanguinária.

Assim, em nome da diversão e da inteligência, espero tempos em que volte a reinar o politicamente incorreto, com os seus derivados de precisão lingüística e humor negro. Porque esse negócio de politicamente correto é chato, muito chato. Tão chato que chega a causar arrepios: por causa do politicamente correto, em Brasília ninguém mais chama ninguém de corrupto ou ladrão, mas de pessoa dotada de ética alternativa.

Quero o politicamente incorreto. Nunca apreciei o politicamente correto e hoje este perdeu todo o seu charme e apelo social. Perdeu a graça a definição da expressão "politicamente correto", tal como formulada por Henry Beard e Christopher Cerf em seu magnífico "Dicionário do Politicamente Correto" (L&PM Editores): "politicamente correto: culturalmente sensível, multiculturalmente não-discriminatório, apropriadamente inclusivo". A expressão politicamente correto, apropriada pela elite branca no poder com um instrumento para atacar o multiculturalismo, deixou de ser, como se vê, politicamente correta.


Campo Grande MS, terça-feira, 3 de fevereiro/2009

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